
Em uma democracia liberal, os tribunais constitucionais existem para garantir a supremacia da Constituição, proteger os direitos fundamentais e assegurar o equilíbrio entre os poderes. Quando esse equilíbrio se rompe — seja por ação ou omissão —, todo o edifício democrático se fragiliza. É sob essa perspectiva que as recentes declarações do ex-presidente do Supremo Tribunal Federal, Marco Aurélio Mello, devem ser lidas: como um sinal de alerta vindo de dentro do próprio sistema.
Marco Aurélio, conhecido por sua coerência jurídica e independência durante mais de três décadas no STF, apontou aquilo que muitos juristas, liberais e observadores da política já percebiam com apreensão: o Supremo Tribunal Federal tem ultrapassado reiteradamente os limites de sua competência constitucional, agindo como legislador, executivo e, por vezes, como censor da sociedade.
Sob o pretexto de preencher lacunas legais ou de proteger a democracia contra ameaças externas, a Corte tem, na prática, legislado em temas sensíveis, definido políticas públicas complexas sem base legal clara, e silenciado dissidências por meio de interpretações elásticas sobre o que constitui “desinformação” ou “ameaça à ordem democrática”. Essa atuação gera insegurança jurídica, tensiona a separação de poderes e subverte o princípio fundamental do Estado de Direito: ninguém está acima da lei — nem mesmo os ministros da Suprema Corte.
A advertência de Marco Aurélio é oportuna não apenas por seu conteúdo, mas pelo momento. O STF vem acumulando, nos últimos anos, decisões controversas que envolvem censura a veículos de imprensa, derrubada de leis aprovadas pelo Congresso com ampla maioria, criminalização de condutas sem base legal anterior e a abertura de inquéritos conduzidos fora dos parâmetros constitucionais.
Por trás de muitas dessas ações está o argumento de que “os tempos exigem” respostas firmes. A ministra Cármen Lúcia, por exemplo, recentemente defendeu, em julgamento sobre a regulação das plataformas digitais, que “não se pode permitir uma ágora com 213 milhões de tiranos soberanos”, relativizando a liberdade de expressão em nome de um suposto bem coletivo. A metáfora usada pela ministra reforça uma visão paternalista do Estado, segundo a qual o cidadão precisa ser protegido de si mesmo — um princípio antitético ao liberalismo clássico.
Sob essa lógica, o STF tem ocupado um espaço perigoso: o de guardião da verdade. A crítica liberal aqui é evidente: não cabe ao Estado decidir o que é verdade ou mentira, mas garantir que o debate sobre a verdade ocorra em um ambiente de liberdade e pluralismo. Quando a Corte começa a funcionar como filtro ideológico da sociedade, transforma-se em uma instituição de controle, não de garantia.
A politização da Corte também tem efeitos colaterais profundos. Ao se colocar como protagonista de disputas políticas, o STF perde autoridade técnica e se torna parte do conflito institucional, minando a confiança da população no Judiciário como um todo. A judicialização de tudo — do aborto à política de preços da Petrobras, das redes sociais à tributação interestadual — converte o Supremo em árbitro supremo da política nacional, num país onde o Congresso se omite e o Executivo, frequentemente, coopta.
Esse desequilíbrio gera um paradoxo: o STF cresce em poder, mas encolhe em legitimidade. E quanto mais poder concentra, mais difícil se torna criticá-lo sem ser acusado de atacar a democracia — um raciocínio que, por si só, já revela a fragilidade do sistema democrático.
O alerta de Marco Aurélio Mello é, acima de tudo, um chamado ao retorno à moderação institucional. O Supremo precisa voltar a ser o que é: um tribunal de garantias, não de vontades. Sua função não é moldar a sociedade segundo convicções pessoais dos ministros, mas assegurar que os direitos previstos na Constituição sejam respeitados por todos os poderes — inclusive por ele próprio.
O pensamento liberal, ao contrário do que muitos imaginam, não é avesso à justiça constitucional. Pelo contrário: reconhece que um Judiciário forte e independente é essencial para conter abusos do Legislativo e do Executivo. Mas essa força precisa vir do respeito à Constituição, da previsibilidade das decisões e da humildade institucional — nunca do voluntarismo político ou da sede de protagonismo.
O Brasil precisa urgentemente repensar o papel de sua Suprema Corte. O STF não pode ser um superpoder. Precisa ser um poder de contenção. E para isso, a crítica liberal — como a feita por Marco Aurélio — deve ser ouvida, debatida e, principalmente, aplicada. Porque sem limites claros e respeitados, nenhuma democracia resiste.

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