
Em maio de 2025, a Argentina registrou sua menor taxa de inflação mensal em cinco anos: 1,5%. Para um país habituado ao caos inflacionário — com preços mudando diariamente, salários desvalorizados em tempo recorde e um histórico de desconfiança crônica na moeda local — o número tem um peso simbólico e histórico. O governo Javier Milei celebrou o resultado , e com certa razão: o ajuste fiscal severo, o corte de subsídios e a liberalização cambial finalmente começam a surtir efeito na fotografia macroeconômica. A inflação desacelera, o peso se estabiliza e os mercados respiram aliviados.
Mas essa calmaria esconde turbulências de outra natureza. O custo não é apenas social — é também geopolítico e institucional. Resta a pergunta: vale a pena estabilizar a economia a qualquer preço?
Poucos dias após a divulgação do índice inflacionário, o Fundo Monetário Internacional anunciou um novo acordo com a Argentina: US$ 20 bilhões em crédito, reforçando a confiança internacional no “novo rumo” do país. A manchete impressiona. Mas o que parece um gesto de confiança global também soa como um velho script: a Argentina volta a ser o “bom aluno” de Washington, recompensada por seguir uma cartilha que, em muitos momentos da sua história, gerou mais dependência do que desenvolvimento.
A condução econômica da Argentina passa, novamente, a refletir menos as demandas internas e mais os ditames de organismos internacionais. . As metas de superávit, os cortes no funcionalismo, o encolhimento de programas sociais e a dolarização parcial dos fluxos financeiros refletem a adoção irrestrita de uma agenda liberal radical, profundamente sintonizada com os interesses do Fundo. As decisões deixam de ser tomadas em Buenos Aires e passam a ser definidas em Bruxelas, Nova York ou Washington
Essa não é uma crítica rasa ao liberalismo econômico ou ao combate à inflação — que é, sim, uma meta legítima. O ponto é outro: em nome de controlar preços e agradar investidores, a Argentina está, mais uma vez, abrindo mão de sua soberania decisória. É uma repetição melancólica. No início dos anos 2000, algo semelhante ocorreu: estabilidade aparente, euforia do mercado e, depois, colapso social. O risco de déjà-vu é real.
E, enquanto isso, a vida nas ruas pouco melhora. A inflação cai, mas a pobreza não: mais da metade da população segue abaixo da linha de pobreza. O consumo desaba, o crédito desaparece, os serviços públicos definham. A queda da inflação, que deveria ser alívio, chega sem celebração para quem já não tem o que comprar. Para muitos argentinos, o FMI não representa estabilidade, mas sim desemprego, austeridade e cortes. A confiança internacional se reconquista às custas da confiança interna, às custas da confiança interna, que se desfaz. .
Javier Milei, que se elegeu como outsider antissistema, hoje governa com uma ortodoxia que lembra os manuais mais clássicos do neoliberalismo global. O paradoxo é evidente: : o libertário que prometeu romper com a velha política acaba reproduzindo uma dependência estrutural uma dependência estrutural, alinhando-se ao exato modelo que seus eleitores disseram rejeitar. A Argentina, cansada de crises, abraça o remédio amargo — mas o faz sem saber se a cura é real ou apenas um alívio momentâneo antes de uma nova recaída.
A questão, portanto, não é apenas técnica. É existencial. Qual é o preço da autonomia? Vale a pena derrubar a inflação se, em troca, o país entrega suas rédeas a organismos internacionais e interesses externos? O que significa crescer, se esse crescimento depende da renúncia contínua à autodeterminação política?
A vitória da desinflação é real. Os números estão aí. Mas o custo — invisível, porém profundo — é o de uma nação que corre o risco de se tornar economicamente saudável e politicamente tutelada. No palco da política latino-americana, a Argentina ensaia mais um capítulo de um drama antigo: o desejo de estabilidade que, quando imposto de fora para dentro, cobra o preço da identidade.
E como quem já viu esse filme antes, é difícil aplaudir de pé sem saber quem está escrevendo — e para quem se destina — o roteiro do último ato.

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