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“Apocalipse no Trópico”: quando o preconceito ideológico substitui a análise crítica

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O documentário Apocalipse no Trópico, lançado recentemente, tenta oferecer uma leitura do papel do movimento evangélico na política brasileira. No entanto, ao invés de entregar uma análise consistente, baseada em evidências e em diálogo interdisciplinar, a obra se perde em um viés ideológico superficial que revela mais sobre os preconceitos da documentarista do que sobre os fenômenos que ela se propõe a examinar. O resultado é uma narrativa que, sob o pretexto de alerta democrático, contribui para a estigmatização de milhões de brasileiros e para o empobrecimento do debate público.

A fragilidade metodológica do documentário é evidente desde os primeiros minutos. A diretora parece não ter qualquer formação ou domínio sobre antropologia da religião, estudos culturais ou mesmo sobre os fundamentos do Direito Constitucional brasileiro, especialmente no que se refere à liberdade religiosa e à liberdade de expressão. Em vez de buscar entender o movimento evangélico em sua diversidade teológica, social e histórica, ela opta por uma abordagem simplista que reduz os fiéis a uma massa acrítica manipulada por líderes inescrupulosos. Essa caricatura desumaniza e invalida o protagonismo de milhões de pessoas que encontraram, na fé, um caminho de pertencimento, dignidade e ação política.

Além disso, a documentarista demonstra um desconhecimento flagrante sobre o funcionamento das dinâmicas de poder. Ao criticar a presença de evangélicos na política, ela ignora que o espaço público numa democracia liberal deve ser inclusivo e plural — não restrito àqueles que compartilham de uma visão secularizada ou progressista do mundo. O Estado é laico, mas a sociedade é livre. Não há qualquer contradição entre a laicidade institucional e a participação política de grupos religiosos. O que a obra parece sugerir é uma espécie de “laicismo autoritário”, no qual só teria legitimidade democrática quem abdica de qualquer convicção religiosa em nome de uma suposta racionalidade “neutra” — que, na prática, é profundamente ideológica.

Do ponto de vista liberal, essa visão é inaceitável. O liberalismo não é uma ideologia anticlerical ou hostil à fé. Ao contrário: ele defende o direito do indivíduo de crer, de não crer, e de expressar suas convicções no espaço público, desde que respeitados os direitos dos demais. O pluralismo democrático pressupõe que diferentes visões de mundo convivam e disputem legitimamente os rumos da sociedade. O que ameaça a democracia não é a presença da religião na política, mas sim a intolerância de quem não suporta conviver com a diferença.

A obra também carece de qualquer rigor histórico. Ignora, por completo, o papel estruturante da religião na história da humanidade. As grandes civilizações — da Grécia antiga a Roma, passando pelas tradições judaico-cristãs, islâmicas, hinduístas e africanas — sempre tiveram sua organização política e cultural profundamente atravessada por concepções religiosas. Muitas das ideias que hoje consideramos pilares da modernidade — como a dignidade humana, o valor do indivíduo, a ideia de justiça — têm raízes em tradições religiosas. Ao desconsiderar esse legado, o documentário reescreve a história com tintas ideológicas, negando a contribuição da religião para a construção da própria liberdade que hoje permite que ele seja criticado.

Por fim, Apocalipse no Trópico peca por não oferecer alternativas. É fácil apontar dedos, mas difícil é compreender, dialogar e propor. A obra não apresenta soluções para os supostos riscos que denuncia. Ela não promove o diálogo entre visões de mundo diferentes. Não tenta entender por que milhões de brasileiros — especialmente os mais pobres — se identificam com o discurso evangélico. Não considera que, talvez, essa adesão revele um vácuo deixado pelo Estado, pela academia e pelas elites culturais, que há décadas negligenciam as necessidades reais dessas populações. Em vez de enfrentar a complexidade, a diretora opta pelo conforto da condenação moral.

Em resumo, o documentário é mais um sintoma da intolerância travestida de crítica. Ele representa uma visão reducionista e elitista, que teme o povo e desconfia da liberdade. Ao estigmatizar a fé como ameaça, contribui para o aprofundamento da polarização e para o enfraquecimento do próprio tecido democrático que diz defender. Em tempos de riscos reais à liberdade — vindos tanto da extrema direita quanto da nova censura progressista —, o que precisamos não são de discursos alarmistas, mas sim de um liberalismo firme, que defenda com coragem a liberdade de todos, inclusive daqueles com quem discordamos profundamente.

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Juliana Antonelli

É uma defensora da liberdade e acredita que este é o único caminho para a construção de uma sociedade verdadeiramente livre e próspera. Atualmente e formada em Direito. Nas horas vagas, adora debater política, conhecer novos lugares, livros e escrita.

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