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Promiscuidade dos Poderes: o teatro das hipocrisias

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A Constituição Federal de 1988, que deveria ser a pedra basilar e inabalável do Estado Democrático de Direito, tem sido relegada a um papel simbólico, quase um “peso de porta” usado para evitar choques e resistir a pressões políticas. Em uma cena que poderia muito bem ter saído de uma obra dramática de Qorpo Santo – dramaturgo gaúcho do século XIX conhecido por sua crítica feroz à hipocrisia dos governantes – assistimos hoje a uma confusão perigos e recorrente entre os três poderes da República: legislativo, executivo e judiciário.

O artigo 2°da Constituição é claro ao estabelecer que “São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.” Nessa divisão, cabe ao Legislativo criar, alterar e revogar leis, bem como fiscalizar sua execução, funções exercidas pelo Congresso Nacional, Assembleias e Câmaras Municipais. O Executivo por usa vez governa, administra e executa as leis, papel desempenhado pelo Presidente da República, Governadores e Prefeitos. Por fim, o Judiciário interpreta e aplica as leis de forma imparcial, técnica e independente.

No entanto, não é incomum observarmos hoje uma proximidade indevida e até interesseira entre esses poderes. Ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) se envolvem em articulações políticas, figuras que se julgam parte do Executivo viajam em companhia de magistrados com a justificativa de economia de gastos e interferências na independência judicial aparecem cada vez mais evidentes. Tal cenário compromete a imparcialidade e fragiliza os pilares da democracia.

Um exemplo recente e emblemático dessa crise foi a decisão do STF de alterar na prática o Marco Civil da Internet — Lei nº 12.965/2014 — sem a participação do Legislativo. Originalmente, a lei assegurava a liberdade de expressão e impedia a censura arbitrária, determinando que provedores de internet só poderiam ser responsabilizados por conteúdos ilegais após ordem judicial específica. Agora, o tribunal decidiu que uma simples notificação extrajudicial, como uma denúncia de usuário, seria suficiente para exigir a remoção do conteúdo, sob pena de responsabilização judicial da plataforma.

Esta decisão extrapola o papel do Judiciário, configurando uma invasão clara da competência legislativa, o que fere o princípio da separação dos poderes. Como bem observou Montesquieu, em O Espírito das Leis, “Para que não haja abuso, é necessário que, pelo menos, os três poderes sejam separados.” Quando um poder invade a esfera do outro, o equilíbrio se perde e a tirania pode se instalar.

O teatro da votação no STF, com falas carregadas de emoção e aparente condescendência entre os ministros, contribui para a percepção de um processo distante da imparcialidade que deveria nortear as decisões judiciais. Em palavras de Hannah Arendt, “O poder nasce do consenso e desaparece quando o consenso se rompe.” Se os juízes se tornam atores em um palco político, a confiança do povo nas instituições se dissolve.

Ao recordar a obra Eu sou a vida; eu não sou a morte, de Qorpo Santo, temos um retrato atemporal da hipocrisia e teatralidade dos governantes. Em 1866, ele denunciava a farsa dos que se apresentam como defensores da justiça, enquanto perpetuam o autoritarismo. Hoje, essa crítica permanece inquietantemente atual.

Diante disso, surge a inquietante pergunta: em 2025, já tão distante do texto constitucional, que espaço restará para a liberdade? E olhando adiante, ao Brasil de 2030, será que ainda será possível publicar críticas e defender a democracia sem medo de censura ou retaliações?

É imperativo que os brasileiros e brasileiras reflitam e se mobilizem para resgatar o verdadeiro sentido da Constituição e garantir a independência e equilíbrio dos poderes. Como alertava Alexis de Tocqueville, “A tirania pode nascer da democracia e a democracia pode nascer da tirania.” A vigilância constante é a única defesa contra a erosão dos direitos e da liberdade.

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