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O STF e a responsabilidade civil das plataformas: um retrocesso disfarçado de proteção digital

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A recente decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a responsabilidade civil das plataformas de internet marca uma inflexão preocupante no regime jurídico estabelecido pelo Marco Civil da Internet (MCI). A proposta do ministro Flávio Dino, acompanhada pela maioria da Corte, dilui a segurança jurídica da regra prevista no artigo 19 do MCI — que condicionava a responsabilização civil à inércia do provedor após ordem judicial específica — e passa a admitir a responsabilização direta com base em critérios vagos, como “falha sistêmica”.

Do ponto de vista liberal, o problema não está em reconhecer a gravidade de conteúdos ilícitos — como incitação à violência, terrorismo ou apologia ao suicídio — mas em permitir que a repressão a esses conteúdos se dê sem os freios e contrapesos institucionais previstos no Estado de Direito, especialmente o devido processo legal. Ao afastar a necessidade de ordem judicial prévia, a decisão abre brechas para a censura privada e a autocensura, pois plataformas tenderão a remover preventivamente conteúdos por medo de sanções, comprometendo o espaço do debate democrático.

Esse ponto se agrava quando se analisa o voto da ministra Cármen Lúcia, que defendeu com firmeza o aumento da responsabilidade das plataformas mesmo sem exigência judicial prévia. Segundo a ministra, a democracia não pode tolerar a transformação das redes sociais em arenas de tirania verbal. “Não se pode permitir que estejamos numa ágora em que haja 213 milhões de pequenos tiranos soberanos”, declarou, em alusão ao potencial destrutivo da liberdade de expressão mal utilizada.

Cármen Lúcia também afirmou que não está em jogo o retorno da censura, mas sim a necessidade de aplicar regras que garantam uma convivência minimamente saudável no ambiente digital. “Censura é proibida constitucionalmente, eticamente, moralmente, e eu diria até espiritualmente”, declarou, destacando que o problema está no abuso da liberdade de expressão — e não na sua existência.

Ainda que essas preocupações sejam legítimas, do ponto de vista liberal, a solução proposta é incompatível com a lógica das garantias individuais. A liberdade de expressão, por mais desconfortável que seja, é o fundamento que sustenta a crítica política, o pensamento dissidente e o pluralismo. Quando o Estado — ou, indiretamente, as plataformas sob ameaça de sanção — passa a filtrar o discurso público sem mediação judicial, o risco não é apenas de censura institucionalizada, mas de erosão silenciosa da confiança democrática.

A tentativa de reinterpretar o artigo 19 do MCI não encontra respaldo claro nem na letra da lei, nem em sua exposição de motivos. O marco legal brasileiro foi inspirado em sistemas que prezam pela neutralidade das plataformas, protegendo-as de responsabilidade civil exceto em casos muito específicos — como pornografia não consensual ou infração a direitos autorais. Romper com esse modelo é estabelecer um precedente perigoso: transformar intermediários em juízes da legalidade do discurso alheio, o que equivale, na prática, a criar um sistema de justiça paralela gerido por empresas privadas, pressionadas por critérios subjetivos e incertezas regulatórias.

A proposta também impõe uma obrigatoriedade de autorregulação supervisionada pela Procuradoria-Geral da República, o que representa uma forma velada de regulação estatal indireta, esvaziando a competência do Congresso Nacional e introduzindo uma lógica de tutela constante sobre o discurso público.

Como alertou corretamente o ministro Luiz Fux, questões tecnológicas de alta complexidade e impacto social devem ser discutidas e normatizadas pelo Poder Legislativo, e não resolvidas por decisões judiciais impositivas. Em temas que envolvem inovações contínuas, mutações culturais e impactos econômicos diretos, a prudência exige deliberação democrática, debate técnico e diálogo com a sociedade civil.

O resultado da decisão é uma instabilidade jurídica com consequências reais: empresas digitais operando sob incerteza, aumento dos custos regulatórios, retração da inovação e incentivos perversos para remoção de conteúdos legítimos. Isso atinge, sobretudo, startups e pequenos empreendedores digitais, que não dispõem da estrutura jurídica necessária para navegar esse novo cenário.

A crítica aqui não é à intenção de proteger vítimas ou combater crimes digitais. É ao método adotado, que abdica da neutralidade e da previsibilidade em troca de uma responsabilização subjetiva e casuística. Em nome de um suposto avanço, o STF desestabiliza o regime de liberdades da era digital, rompe com a reserva de jurisdição e compromete a proporcionalidade — três fundamentos centrais do constitucionalismo liberal.

Ao permitir que plataformas privadas determinem, sob ameaça de sanção, o que deve ou não circular na esfera pública, corre-se o risco de suprimir justamente os discursos que mais precisam de proteção: os incômodos, os divergentes, os críticos ao poder.

No lugar de equilibrar direitos, o tribunal corre o risco de se tornar mais um ator do desequilíbrio.

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Juliana Antonelli

É uma defensora da liberdade e acredita que este é o único caminho para a construção de uma sociedade verdadeiramente livre e próspera. Atualmente e formada em Direito. Nas horas vagas, adora debater política, conhecer novos lugares, livros e escrita.

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