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O Coração da Eurásia: qual o interesse russo na Ucrânia?

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No artigo “A Língua como Arma”, foi endereçado o argumento da suposta perseguição a minorias russas. Tudo que os apologistas da Rússia acusam Kyiv já foi praticado por Moscou, conforme foi mostrado em um histórico da supressão da autodeterminação de seus vizinhos, desde o Império Tsarista até a Federação Russa moderna. Agora, resta a linha de raciocínio da história geopolítica. 

Segundo autores da área, a ausência de barreiras naturais entre a Alemanha e Belarus tornaria a Rússia muito vulnerável a invasões. Esta concepção é reforçada por três teorias diferentes:  o Heartland, o Rimland e o Grande Xadrez. Todos se focam na dimensão geográfica de maneira fatalista. Ignoram a agência e as aspirações dos indivíduos.

Pensadores aderentes à ideia de Heartland (extensa região terrestre que abrange a Sibéria e o leste europeu), de Mackinder, colocam a Ucrânia como porta de entrada para a Europa. Controlando a Europa Oriental, Moscou teria soberania sobre todo o Heartland e, assim, sobre a Ilha-Mundo e, por sua vez, o mundo inteiro. A Ucrânia, ao se localizar na borda do Heartland, seria vital para a Rússia, seja para iniciar ações ofensivas, seja para criar defesa em profundidade.

Já Spykman afirma que o Rimland (Europa Ocidental, Oriente Médio, sudeste asiático e sul da China) é o território mais importante. Apesar disso, há uma convergência com a ideia de que a Ucrânia é fundamental para a segurança russa. Após as invasões napoleônica e nazista, os russos seriam “gato escaldado”. A OTAN estaria provocando Moscou ao se expandir para o leste. Com a anexação de vários ex-membros do Pacto de Varsóvia e da URSS, a Ucrânia seria o entroncamento da Rimland com a Rússia. Seria a última zona “tampão” entre Moscou e a OTAN. 

Por fim, a teoria do Grande Xadrez, de Brzezinski, propõe que os territórios são como um tabuleiro de xadrez (ou de WAR) e que, nesse contexto, a Ucrânia é o pivô. Sem ela, a Rússia não consegue se estabelecer como um império. Com ela, sai fortalecida como grande protagonista internacional. 

As três teorias convergem para a noção de que o território ucraniano é importante para os russos. A diferença crucial é perceber essa imprescindibilidade como meramente defensiva ou base para construir um império hegemônico.

Será a Rússia quem pode acusar a OTAN de expansionismo? Do ponto de vista da falta de barreiras naturais, a Polônia, os países bálticos e a Finlândia não podem usar o mesmo argumento, no sentido inverso? E a própria Ucrânia, atacada duas vezes em oito anos? Para isso, verifique-se a história das guerras em que a Rússia esteve envolvida.

O próprio surgimento do Império Tsarista advém da Grande Guerra do Norte, em que Pedro, o Grande, tomou da Suécia regiões dos atuais países bálticos e Finlândia. Ao longo dos séculos XVIII e XIX, Moscou travou diversas guerras com o Império Otomano. O resultado foi a conquista russa do litoral do mar Negro, o atual sul da Ucrânia (o que inclui a Crimeia) e a Moldávia. Igual efeito tiveram as guerras contra a Pérsia, ocupando a região do Cáucaso. Será que essas conquistas territoriais não foram ofensivas? Será que, apesar de esses impérios estarem em franca decadência, representavam perigo tal que a Rússia sentia a necessidade de guerras preventivas para criar buffer zones?

Depois, o padrão se repetiu na aliança que Moscou forjou com Berlim e Viena, nas partições da Polônia (1772-95). E nas guerras contra canatos da Ásia Central que lhe renderam ocupar Cazaquistão e outros “istões”. E na Guerra Russo-Chinesa, que lhe deu saída para o Pacífico. Será que os montes Urais não forneciam proteção tão boa quanto os Cárpatos? Teria sido necessário, então, que a zona “tampão” se estendesse por toda a Sibéria?

Já sob a justificativa ideológica de espalhar o comunismo, a Rússia soviética tentou, de forma fracassada, invadir a Polônia, em 1919. Duas décadas mais tarde, com apoio nazista, conseguiu. E, em seguida, retomou os países bálticos. Outro país que saíra da esfera de influência moscovita com as revoluções de 1917, a Finlândia conseguiu manter sua soberania com a invasão de 1939. O plano de Stálin era invadir todo o país; mal conseguiu que Helsinque concedesse a região da Carélia.

Durante a Guerra Fria, houve as intervenções da Hungria (1956), Tchecoslováquia (1968) e Afeganistão (1979). Em 1990, percebendo que a URSS estava dando seus últimos respiros, Bóris Iéltsin mandou ocupar a Transnístria, região da Moldávia fronteiriça à Ucrânia. O argumento era proteger minorias russas perseguidas pelos moldavos. Uma região de predominância russa merecia autodeterminação. Familiar? Até hoje, permanece como um estado não reconhecido. Foi o primeiro sinal de que a Federação Russa moderna não mudaria.

Nos anos 1990, a Chechênia buscou a mesma autodeterminação que Moscou dissimulou defender na questão da Transnístria. Após duas guerras, a capital, Grozny, foi reduzida a escombros pela artilharia russa. Em 2008, em plenas Olimpíadas de Pequim, a Geórgia foi atacada a mando de Medvedev e perdeu dois territórios que se tornaram estados-satélites não reconhecidos por ninguém além do Kremlin. 

O mesmo aconteceu em 2014 com a Crimeia e partes de Luhansk e Donetsk, na Ucrânia. Com soldados encapuzados e sem identificação russa, simularam guerra separatista na qual eles tomaram territórios fronteiriços. E os “separatistas” criaram “repúblicas autônomas” subservientes a Putin. Com a invasão de larga escala de 2022, foram-se partes de Kherson e Zaporíjia.

Como mostrado, diferentes regimes autocráticos de Moscou estão, sempre, tentando projetar poder pela via da conquista territorial. Fosse mera necessidade de estabelecer posições estratégicas se utilizando da vantagem topográfica, a Rússia poderia se contentar em ter os montes Urais como delimitação natural das fronteiras.

A Rússia soviética invadiu territórios na Europa Oriental anos antes de surgir a OTAN. A Rússia tsarista tomava territórios dos suecos, otomanos e persas, antes de os EUA sequer existirem. Provocação ocidental não havia.

Falando em provocação, a tal “expansão da OTAN para o leste” nada mais foi do que resultado da sua política de portas abertas. Cada país do leste europeu que ingressou o fez por vontade própria. Bill Clinton era reticente em apoiar a Polônia. Foi necessário que Varsóvia ameaçasse estimular descendentes de poloneses em um estado-pêndulo a votar no candidato republicano da eleição de 1996 para que Clinton agisse de acordo.

E a própria Revolução da Praça Maidan, de 2013/14, se deu após Yanukovich, então presidente, se recusar, de última hora, a assinar um acordo com a União Europeia e, em vez disso, firmar outro com a Rússia. E a União Europeia é do âmbito econômico, não militar. Não era da OTAN que se tratava este episódio. No que Yanukovich começou a reprimir violentamente, os manifestantes escalaram até haver um princípio de guerra civil. Por pouco, o preposto de Putin não aniquilou a autodeterminação ucraniana.

E este é o ponto central que todo liberal clássico, libertário ou conservador deve entender: a autodeterminação, a soberania, só existe quando o povo é capaz de impor sua vontade aos governantes. Quando acontece o contrário, não há soberania a ser defendida. O Iraque, por exemplo, não teve sua soberania atacada em 2003, já que não havia uma a ser defendida. Por outro lado, quando o ditador, não contente em reprimir seu próprio povo, decide infernizar os vizinhos, deveria ser ponto comum que a nação invadida deve ser apoiada. 

É alarmante ver libertários e conservadores influentes se colocando como neutros nessa guerra. Como pode um libertário que defende o Princípio de Não-Agressão argumentar que os dois lados estão errados nessa invasão? Ou um conservador que defende a soberania, quando se trata da nossa Amazônia, defender que a Ucrânia tenha de ceder territórios para a Rússia?

Com tudo o que foi exposto, a única conclusão possível é que a importância da Ucrânia para os líderes moscovitas se dá na medida em que ela é considerada “quintal” russo. Não como mero “tampão”, mas para afirmar supremacia. A Ucrânia, ao buscar uma trajetória independente e pró-ocidental, representa uma ameaça existencial não à segurança da Rússia, mas ao modelo autocrático e expansionista que o Kremlin busca perpetuar.

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Carlos Marcelo

Carlos Marcelo é graduado em Economia com linha de formação em Finanças e mestrando em Economia do Desenvolvimento. Apaixonado por geopolítica e história militar e econômica. Tem por hobbies graphic novels e cinema e seus bastidores.

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