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A Máquina da Verdade

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Era um mundo como o nosso — com cidades que amanheciam entre buzinas e cafés apressados, pessoas que sorriam por hábito, e segredos bem guardados sob a pele. Nada, à primeira vista, parecia fora do lugar. Mas houve um pequeno evento que foi capaz de mudar completamente a realidade deste lugar: A criação da Máquina da Verdade. Um pequeno aparelho, que apesar de compacto foi capaz de ocasionar uma das maiores reviravoltas já presenciadas pela humanidade, caçando a mentira até nos cantos mais obscuros da mente humana e acabando com o conforto das meias verdades do cotidiano. 

Irei contar a história de um mundo paralelo ao nosso, em que trata-se de uma sociedade com muitas similaridades com aquilo que já é conhecido pelo homem em nosso cotidiano, entretanto, nesse mundo, há também pequenos elementos que fizeram com que sua história tomasse rumos completamente diferentes dos nossos. Uma das grandes diferenças foi a criação de uma tecnologia capaz de ocasionar uma das maiores reviravoltas já presenciada pela humanidade.

Bom, a história teve seu com o  Dr. Edgar Norton, um cientista brilhante e apaixonado pela Neurociência. Desde criança ele sempre fora obcecado por aprender sobre sua própria espécie e as razões pelas quais os seres humanos faziam o que faziam. Sendo assim, após finalizar sua formação, Edgar decidiu adentrar no ramo da consultoria comportamental para venda de novos produtos. O Doutor era pago conforme ajudava a desenvolver novas criações e então encontrar uma forma de torná-las atrativas ao público geral. Sendo um homem extremamente dedicado ao trabalho com o intuito de sustentar sua família, Edgar passava a maior parte do seu tempo envolvido nos mais distintos projetos possíveis, na esperança de um dia conseguir criar algo que pudesse revolucionar a qualidade de vida das pessoas para sempre. Sua vida era árdua e corrida, porém ele sempre se considerou um homem feliz e privilegiado pela sua condição de vida.

Certo ano, o cientista passou a encontrar sérios problemas com sua capacidade criativa, fato que o deixou cada vez mais estressado e frustrado com seus resultados profissionais. Essa decadência gerou também um profundo abalo em suas finanças, entretanto, o pior ainda estava por vir. Após anos de casamento, Edgar descobriu uma traição de longa data de sua companheira, a qual escondeu e mentiu sobre diversos acontecimentos ao longo do tempo. Completamente abalado e emocionalmente desequilibrado,  ele ficou tomado pelo ressentimento e pela raiva, fato que o levou a considerar que a mentira e a deslealdade eram os verdadeiros vilões da humanidade.

Sozinho e com apenas um objetivo em mente, Edgar Norton iniciou, então, o que em breve se tornaria o maior feito de sua vida: a criação de algo que poderia de fato mudar os rumos de toda a sociedade humana. Usando seus conhecimentos sobre neurociência, Dr. Norton buscou algo que pudesse curar a humanidade da mentira. Assim, certo dia, enquanto acompanhava pesquisas com o tratamento de doenças psíquicas com terapias de eletrochoque, encontrou a inspiração para tornar realidade o seu ousado objetivo. Usando as bases da eletroconvulsoterapia, Dr. Edgar foi capaz de criar um novo aparelho que influenciaria nas bases eletromagnéticas do cérebro, obrigando um indivíduo a falar a verdade quando fosse questionado. Antes mesmo da realização dos últimos ajustes, o aparelho já era o assunto mais comentado entre a comunidade científica após a gravação de um rápido experimento em que a invenção fizera uma cientista assumir que havia um caso extraconjugal com uma colega de trabalho a anos, e então, ainda que involuntariamente conseguiu expor a verdade e tirar um grande peso de seus ombros. O caso rapidamente viralizou para além dos cientistas e passou a ser o tópico mais debatido nas redes sociais. Por um lado, muitos estavam comentando os aspectos específicos que envolveram o teste com a cientista. Já na segunda perspectiva, muitos se questionavam sobre o verdadeiro potencial da nova invenção e mal podiam esperar colocá-la em campo. Assim, observando o intenso potencial da criação de Edgar, não demorou muito para que governantes passassem a enxergar os benefícios que a nova máquina poderia ocasionar na sociedade e logo a incorporaram em seu sistema.

 O aparelho passou a ser chamado, de “A Maquina da Verdade” e, desbancou todo e qualquer dispositivo já criado para detectar mentiras. Afinal a nova invenção não apenas poderia ser usada para apontar os mentirosos, mas poderia obrigá-los a falar nada além da mais pura verdade. O primeiro setor a utilizar a máquina foi o setor de investigação de crimes, o qual passou a intimar os suspeitos a passarem pela provação do aparelho. Inúmeros crimes que, até então, não haviam sido solucionados foram completamente resolvidos em poucos dias. Nunca na história da humanidade houveram tantas prisões de malfeitores bem sucedidas, sendo por seus crimes graves ou não. 

Em seguida o setor jurídico ,também, passou a utilizar a máquina, obrigando os réus, testemunhas e vítimas, a usá-la enquanto estivessem relatando suas versões. Os processos passaram a serem resolvidos muito mais facilmente, afinal, independente de qual fosse o caso, as intenções de cada uma das partes ficavam nítidas e diretamente expostas. Inúmeras ações judiciais de má fé foram detectadas e, com isso, ainda mais processos surgiram para punir aqueles que haviam tentado se aproveitar da lei em benefício próprio. A máquina passou inclusive a revelar a atuação corrupta de inúmeros juízes os quais abusavam de seus poderes para favorecerem a si e demais pessoas próximas. Tal fato causou inúmeros escândalos nos tribunais de todo o mundo.

Dessa forma o povo passou a exigir que seus governantes passassem a prestar contas de sua inocência e transparência ao se submeterem ao teste da Máquina da Verdade. E, em questão de semanas, os governos  estavam enfrentando inúmeros processos de impeachment ao longo das sociedades. Escândalos de corrupção trilionários foram descobertos envolvendo até políticos que tinham o histórico perfeito em suas carreiras. Ainda mais, diversos esquemas estruturais foram relevados quando os governantes passaram a cuspir as verdades. Assim, a população descobriu os mais terríveis crimes contra sua própria dignidade e existência. Em um dos países que sofria com ampla pobreza, os líderes revelaram, a partir do uso máquina da verdade, que eles usavam grande parte dos recursos públicos em futilidades, salários próprios e demais benefícios,para que não houvesse o desenvolvimento da economia e da educação do país. Assim eles poderiam se manter no poder por mais tempo. Outras nações, as quais sofriam com altos índices de fome, tiveram outros resultados alarmantes: a verdade  de que os governantes nunca se importaram com este problema, usufruindo de maneira banal dos recursos recebidos pela população. A dura verdade que veio à tona era que no fim se fazia muito mais vantajoso em receber recursos e benefícios constantes para resolver um problema que aparenta ser infindável do que resolvê-lo efetivamente e encerrar a fonte de recursos. Com casos como estes, não demorou para que inúmeros protestos e revoltas eclodiram ao longo do mundo, gerando uma desestabilização de ordem generalizada.

Apesar dessas grandes incorporações, a máquina da verdade logo passou a ser utilizada de modo geral pela sociedade. Até mesmo clínicas privadas passaram a aplicar sessões com a máquina naqueles que se propusessem a pagar. Muitos psicólogos entenderam que estimular um paciente a falar a verdade sem as repressões sociais individuais seria um grande avanço para o alívio das angústias internas. Em outras situações, as pessoas rapidamente passaram a utilizar da nova possibilidade de uso do aparelho para descobrir segredos escondidos por seus cônjuges, amigos e familiares. Deste modo, a mera existência da Máquina mudou completamente a dinâmica da vida das pessoas.  Afinal, ainda que o direito ao silêncio ainda permanecesse, caso alguém se recusasse a comparecer em uma sessão com a Máquina da Verdade já seria um indicativo consistente de que a pessoa estaria escondendo algo importante. Em alguns meses, os cartórios das cidades foram soterrados com pedidos de divórcio devido às descobertas proporcionadas pela criação do Dr. Norton. Os bares, parques e demais locais de convivência social também enfrentaram uma grande queda abrupta após a incorporação do aparelho. Com a mentira extinta, as frágeis relações entre os indivíduos não foram capazes de suportar o peso de ouvir algo além daquilo que se desejava ouvir.

Com isso, poucos meses se passaram e então a sociedade se encontrou em um completo estado de caos e desordem proporcionado pela máquina.  A população, ainda que desejasse saber a verdade, não demonstrou possuir a capacidade de assimilação da mesma. Bom, a grande ironia que se alastrava pelo mundo era o fato de que, a invenção mais engenhosa dos últimos tempos, a qual prometia acabar com um dos grandes males da sociedade, na verdade demonstrou a incapacidade dessa mesma sociedade em viver sem um de seus grandes males. 

Buscando evitar o colapso completo do sistema e das relações humanas, os indivíduos passaram a fazer acordos entre si, de nunca apelarem para o uso da máquina a fim conseguirem estabelecer e manter relações entre si novamente. O processo de recuperação seria lento. Algo que demorou poucos meses para colapsar o sistema social talvez levaria anos até que o dano pudesse ser completamente revertido. Aos poucos, as pessoas sairiam de suas tocas e tomariam a coragem de conviver novamente, mas teriam que carregar o peso da incerteza de não saberem tudo o que se passa na mente de seus amigos e parceiros.

Por fim, os governos então decretaram a suspensão total e completa da Máquina da Verdade e as retiraram de sua imediata utilização. Inúmeros profissionais os quais haviam perdido seus empregos, tais como os detetives e demais investigadores criminais aos poucos foram recuperando suas funções e relevância na sociedade. Com a Máquina da Verdade fora de uso, políticos voltaram a dar as caras e fazer novas promessas para suas populações e seu futuro. Já no âmbito civil e econômico, os ambientes de lazer e convivência social foram aos poucos sendo ocupados novamente. Muitos se perguntavam sobre como seria o progresso da população após essa grande revelação de verdades no mundo afora. Há quem diga que as pessoas aprenderiam a não cometer os mesmos erros novamente e assim viveriam uma vida cultivando naturalmente a verdade. Contudo, há outros que dizem que a sociedade voltaria a ser o mesmo que sempre foi: podre e mentirosa por dentro.

Frustrado com o resultado final de sua criação, Dr. Edgar finalmente concluiu que a mentira não era o principal problema da sociedade humana, mas era, na verdade, um valor tão incrustado nos humanos que servia como o principal pilar que  impedia o colapso de todo o sistema. Submerso em uma ampla reflexão, o Doutor passou a se perguntar profundamente acerca das demais soluções para os outros problemas da humanidade. Entretanto, após horas de dedicação em cada um dos problemas, ele chegava a um denominador comum em todos os casos. 

Talvez a mentira, a corrupção, a fome e a pobreza nunca fossem os reais males da sociedade, pois nenhuma delas era uma causa e sim uma consequência. O denominador comum que todos esses e outros problemas possuíam era a participação direta e indireta das pessoas. Olhando por sua janela com um amplo desgosto em seu peito e uma grande taça de vinho em sua mão, Edgar Norton finalmente concluiu:  “Talvez o problema não seja a máquina da verdade, mas sim o comodismo. É estranho ver o quanto as sociedades se incomodaram tanto ao descobrir todos os problemas os quais eles já sabiam da existência mas que não fizeram nada a respeito. As pessoas preferiram no fim proibir a verdade e existir diante da mentira apenas para continuarem sustentando seu modo de vida confortável e para isso não acho que jamais serei capaz de encontrar uma solução. Enquanto houver mais medo de agir do que do fim, a humanidade continuará sendo sua maior ameaça.”

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Eduardo Rocha

Eduardo Rocha é coordenador das diretorias de Eventos, Comunicação e Projetos. Natural de Bagé-RS, destacou-se profissionalmente como DJ em festas e eventos no interior do estado. Mudou-se para a capital com o objetivo de cursar Psicologia e aprofundar seus conhecimentos em Análise Comportamental e Comunicação Interpessoal.

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